domingo, 14 de setembro de 2014

Desenterrando Espelhos...





Nasci e fui criada na Escócia, terra encantada e mágica, onde a magia era a alma daqueles que eram amantes da natureza.

Nasci e cresci na mesma casa por toda uma vida, uma casa no alto de uma linda colina, onde a floresta era feita de encanto puro e onde os pequenos animais transitavam livres e sem medo. A casa de meus pais abrigou meu nascimento, minha infância e toda minha vida adulta. Os perdi muito cedo e fui criada por um instinto de sobrevivência que eu mesma desenvolvera. Quando completei 7 anos minha mãe me entregou um cordão e um amuleto, Voodoo Mestre, onde ela me orientou que ele me protegeria dos demônios e almas que quisessem fazer – me mal. Ela colocou – o no meu pescoço e com ele convivi até a idade adulta.

A casa da infância é muito afastada da cidade e dali posso vislumbra- la lá em baixo, serena e simples, como uma aldeia. Nasci com uma doença rara designada progerismo, a qual faz com que eu nasça com a pele envelhecida e com o passar dos anos, mesmo jovem, pareça uma velha. Não nasci portadora de nenhuma beleza, sou uma mulher muito feia e com aspecto terrível de pele e cabelos, pois eles estão ficando brancos. Recebi muito amor de meus pais, mas quem mais fez parte de minha vida foi minha mãe, a qual me ensinou as lindas magias que hoje eu uso de todo meu coração.

O preconceito do povo aumentou enormemente depois que minha mãe morreu e eu comecei a me desenvolver na vida mais adulta, pois a doença acentuava – se cada vez mais, fazendo com que eu andasse arcada. Com o tempo fui sofrendo cada vez mais ataques verbais e preconceito, ao ponto do povo atacar – me com ameaças, dizendo que eu era uma amaldiçoada. Eu não falo, apenas vou até a vila quando estritamente necessário, pois as agressões são terríveis e sinto – me muito abatida com aquele tratamento. Sofro muito e aquela vida que tenho é muito sofrida, uma vida de solidão, dores, medo e tristeza por ser só e não poder estar com ninguém.

Por longos anos me retirei da vila, iniciei o plantio de meus próprios alimentos e todas as noites eu meditava sobre a lua intensa e adorada ao meu coração. Minha crença é no poder da natureza e não sou adepta de um poder superior exclusivo e com uma forma, eu acredito no poder da terra, na força da natureza e na energia dos astros e da floresta e isto acalenta minha solidão, minha tristeza com aquela vida de exclusão social. A doença me causa limitações atrozes e dores muito fortes e isto, com os anos limitou – me muito na horta e nos afazeres da enorme casa que herdei de meus pais.

Nunca consegui entender o comportamento do povo sobre a feiura que eu possuía, a pele escamosa e envelhecida ao extremo, o corpo arcado e o grande nariz que me deixava com um aspecto ainda mais deprimente e horroroso. Eu vivia, era como era e não atacava ninguém, mas os ataques me machucavam muito emocionalmente e mentalmente. Jamais me relacionei com algum homem, ou com outras pessoas, pois minha mãe me manteve protegida dos olhos da vila e dos que poderiam estranhar minha condição física. Nossa casa era alegre, havia risadas da criança que fui, mas não lembro de eu saber falar, talvez tenha nascido com algum problema na fala, ou na garganta. Meu pai morreu muito mais cedo, permanecendo apenas eu e ela, e uma criada que a ajudava nos afazeres da gigantesca casa.

Lembro dos inúmeros espelhos que existiam ali, por todos os lados, em cada centímetro da casa e de minha mãe me ensinando a olhar para eles e me aceitar como eu era, de forma natural, sem me tratar de forma diferente. Quando ela morreu e eu tive de ir a vila, senti todo peso da ignorância do povo, que me açoitava com palavras ferinas e ameaças de morte se eu voltasse ali.

...Tenho 18 anos e estou totalmente velha e arcada, as doenças de ossos e cartilagens me açoita ao ponto de fazer – me ainda mais torta e envelhecida. Peregrino sozinha por minhas terras e nunca mais tive forças de organizar a enorme casa, pois era sozinha e a idade da doença não me permitia locomover – me com facilidade. Por muitas noites chorei no topo da montanha movendo – me sob a lua e entoando minha fé naquela natureza exuberante e singela. Dormia ao relento, abraçada a terra e embalada pelos raios lunares que acalentavam minha alma solitária.

Quando durmo e saio do corpo eu sou uma mulher linda, exuberante e com cabelos ruivos, meu tom de pele é muito alvo e meu corpo possui formas lindas e jovens... Ando por ali e ao meu encontro sempre vem um homem, muito alto, muito poderoso que sussurra aos meus ouvidos como se me dominasse... E eu o sigo e deixo que seus sussurros me conduzam. Ele é um Mago Negro.

Quando acordo ali, de manhã, sob o sol suave e a brisa da floresta eu não lembro mais dos encontros e dos encantamentos sob os quais ele me mantem cativa...

Meus dias são dolorosos naquele corpo envelhecido, mas minha mente é jovem, eu sinto o vigor e a liberdade da minha mente presa naquele que se desfaz enquanto luto para me locomover. Muitos da vila estão ali, ameaçam – me, dizem que eu vá embora, que sou uma bruxa, um monstro deformado e demoníaco... E aqueles ataques ferem – me imensamente.

Foram embora e minha revolta com aquele corpo, com aquele rosto tenebroso me faz arrancar todos os espelhos da mansão, eu os odeio, odeio a imagem que refletem, pois ela não é aceita pelos que vivem ali... Aquela imagem que as pessoas possuem de mim me fere, dilacera e consome minha paz... Nunca mais quero ver – me outra vez, nunca mais quero ver aquele rosto deformado e velho, aquelas rugas medonhas e escamadas...

Choro muito a solidão de ter de ficar reclusa, sem poder ver ou falar com alguém e me refugio na colina, onde o sol aquece – me todas as manhãs e onde a lua cobre minha tristeza a cada vez que durmo chorando sozinha. Minha alimentação é precária, pois comia o que plantava e já não consigo mais plantar ou cuidar da horta. O peso da doença limita – me como se eu já estivesse com mais de 90 anos. Meu corpo está fraco, mal nutrido e cuidado.

Estou na colina, abri um buraco e estou enterrando todos os espelhos em um ritual de nunca mais olhar para quem eu era, para quem eu havia me tornado. Eu não mais suportava a solidão que aquele rosto e corpo impingiam a minha alma solitária. Junto com eles eu usei toda minha magia, todo meu conhecimento e poder, para enterrar com eles a minha imagem, a minha face deturpada e horrenda...

E por longas noites dormi ao relento sem conseguir ir até a grande casa e sem alimentos, pois não os podia cultivar com minhas mãos deformadas pela doença.

Aquele Mago me acompanhou por toda aquela vida, soprando aos meus ouvidos a minha feiura e a eternidade dela. Ipinotizou – me de uma forma arquitetada, da qual eu não lembrava quando voltava ao corpo. Me mostrou o que fazer para nunca mais me ver, me aceitar e velou aquele contrato por longas vidas até agora, neste momento atual...

Eu morri na colina, embalada pela lua gigantesca e clara, com o rosto recostado na relva que meus pés sempre amaram e sob a proteção do meu Deus da natureza... Morri de fome, dor, tristeza, solidão e velhice precoce... E uma intensa luz veio buscar minha alma naquele lugar...



Quando acordei na vida atual, agora, no século XXI, eu lutava a braços dados com a visão do meu rosto, do meu corpo e envolvida por aquele Mago Negro que havia reencarnado e vivia ao meu lado. Eu havia passado mais de 30 anos detestando e sofrendo com minha imagem e havia recusado ela perante espelhos por longas décadas de inaceitação e baixa autoestima...



E naquele dia atual eu desci as escadarias do submundo e encontrei aquele que me manipulara naquele ritual, usando minha fraqueza e esquecimento e que me prendera junto com aqueles espelhos antigos. Voltei naquela colina e ajoelhada eu decidi que não mais desejava fugir de minha imagem, do meu rosto atual e do corpo que eu tinha. Eu queria me ver, eu queria me aceitar e não entendia porque era tão dolorosa esta etapa...

Ali, eu desenterrei os espelhos e chorei a solidão que ela tinha vivido naquela vida, chorei o abuso do povo ignorante, chorei as dores atrozes que ela sentira e a falta de pessoas que a amassem... Chorei o abandono que ela causou – se ao decidir que não mais suportava conviver com aquela com quem fora um dia...

Chorei a ignorância e preconceito do povo e a perda da mãe que a amara e protegera...

Chorei a falta de auxílio que ela não teve, a fome que ela enfrentou e lavei minha alma presenciando a humildade com a qual ela resgatou aquele fardo cruel... Pois apesar de tudo, ela fora inocente, não desejara mal a ninguém e nunca reclamara ao seu poder superior...

Ali, eu atual, enverguei a força dela, que era um pedaço de minha alma e a amei, amei aquela forma, aquele corpo, aquela solidão, aquele auto – esforço para vencer e a garra de passar por aquele resgate doloroso... E a amei por ter se transformado em mim, em quem nós duas somos hoje, em quem nos transformamos perante tanta dor, no caminho das vidas sucessivas...

E sob a lua gigantesca do vale, sob a brisa da minha saudosa Escócia eu e ela desenterramos os espelhos e o pacto, desenterramos nossa dor, nossa vergonha, nosso medo da solidão... Ali, junto aos espelhos eu encontrei o cordão com o amuleto que a mãe nos dera, com os espelhos eu , nós enterramos a proteção contra as almas, contra os demônios e nos deixamos a mercê daquele espírito, daquele Mago Negro... Ali, nós duas vimos quando ele se aproximou e enfrentamos juntas o resgate de nosso poder intimo, de nossa crença em nós mesmas, retomando o controle de nossas vidas e retirando – a das mãos dele e de qualquer outro que tentasse nos dominar e enganar.

Coloquei o cordão com o amuleto no pescoço e invoquei todas as mulheres que já havíamos sido até aqui... Mulheres lindas e guerreiras, que eram muito além de um corpo, de uma forma, de uma doença, de uma manipulação escondida... Ali revogamos o contrato com aquele ser do Submundo e incorporamos nosso poder de decidir, de enfrentar e não mais precisar da dor... Uma intensa luz desceu do céu naquela noite serena e iluminou aqueles espelhos, desintegrando o pacto, o Contrato de não vermos nossa imagem refletida em espelhos, refletida no mundo que nos pertencia e a todos que fizessem parte dele...

Revogamos o auto – amor, o autorrespeito e a auto – aceitação... E choramos por relembrar o poder que nos pertencia e que jamais deveria ter saído de nossas mãos... Sorri ao ver minha imagem refletida nos espelhos que se desfaziam com a luz do Criador de almas e ela partiu com a mãe que viera busca – la, enquanto eu parti dali com Wal...

A solidão não era mais um monstro, ela não existia de verdade, pois os anjos do criador sempre haviam estado do nosso lado, ao lado dela e ao meu, me levando depois de tantas vidas até ali, onde estava encrustado o Contrato Sabotador...

A gratidão por aquele momento, por ter o merecimento de desfazer algo que a tantas vidas me prendia era suficiente para que eu a libertasse para ser uma parte mais equilibrada de mim, e para que ela me permitisse viver quem eu , quem ela, havia se transformado.

Nós duas estávamos livres para viver mais uma história, para seguir usando nosso poder e apreciando quem havíamos nos transformado... Mulheres guerreiras, conscientes e dispostas ao bem para revogar o que havíamos abandonado na ignorância que toda alma possui quando está caminhando em direção ao Criador, em direção a verdadeira casa, ao verdadeiro Contrato Original, resgatar – se por inteiro para nunca mais precisar ser partícula solta, esquecida, solitária... Nas mãos alheias...

Amor eterno Wal... O maior amor que cabe em mim... E que por amar – me incondicional, segue – me resgatando e protegendo além das fronteiras dos meus olhos e vendas ilusórias físicas...

Gratidão Anjo meu.


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