Há uma casinha singela no alto de uma colina verdejante, lá o vento sopra sempre suave e caloroso. Recordo os altos capins florais dançando ao sabor da brisa marítima e lembro – me de andar por entre eles acompanhada do meu grande amor.
Lá embaixo o mar dança matreiro e ao longe, conseguimos ouvir seu rugido... Foi neste lugar que eu reencontrei um grande amor e foi neste local que o perdi, apegada demais a minha vaidade de espírito.
...Vejo – me batendo no batente da porta de uma casinha singela, feita de madeira que envelheceu com o tempo. A porta está aberta e posso visualizar seu interior. Ela é tão pequenina que pergunto – me como alguém consegue viver nela... Vejo uma mesa pequenina, quadrada e um chão muito limpo e brilhoso...
Minha mãe pediu que eu levasse um bolo ao morador daquela casinha, tive de vir com a carruagem e o escravo, pois a distância até ali é longa e sou proibida de sair só, pela região.
Uso um lindo vestido de algodão, longo, claro, com anáguas simples, pois o dia está quente. Meu cabelo é muito longo e ondulado, na cor mel e estende – se abaixo das costas. Minha pele é muito branca e meus olhos muito claros... Tenho 15 anos de idade.
Adentrei no recinto e deixei o bolo sobre a mesinha, o sol inunda aquele ambiente e posso visualizar um pequenino cômodo, como uma sala de estar com vista para o mar, totalmente banhado pelo sol. Há um corredorzinho pelo qual sigo, acesso uma porta e abro, olho para o interior e pouco entendo do que vejo. Há muitas imagens, alguns santos, outros não sei definir e coisas abarrotadas por toda a peça. A casinha é muito organizada, limpa e arejada, mas sua pobreza incomoda – me profundamente. Fecho a porta e ao virar – me dou de encontro com o dono da casa. Ele está sorrindo, mas fico totalmente encabulada por ter sido pega em flagrante. Digo – lhe que minha mãe mandou que eu lhe trouxesse mais uma encomenda e vou até a minúscula cozinha mostrar – lhe.
Ele agradece, seus olhos sempre sorriem...
Pergunto – lhe se ele sabe por que minha mãe gosta tanto de enviar – lhe agrados e ele nega saber. Pergunto – lhe como consegue viver naquela casinha, se não se incomoda?
Mais uma vez ele sorri com os lábios e seus lindos olhos, diz que o que importa não é a casa, mas como ele se sente por estar ali...
Convida – me para conhecer a planície onde vive e um pouco receosa eu olho para meu escravo, posicionado, em pé, mais adiante... Não sei se deveria afastar – me, poderia não ser bem vista aquela atitude.
Ele tranqüiliza – me e diz que vai mostrar – me o mar ali do alto, logo adiante. O acompanho alguns metros mais a frente, caminhando por entre longos capins com flores amarelas em suas pontas... Há uma brisa forte e suave... Estamos na beirada do penhasco, conversando... Pergunta – me se não vou liberar o escravo para que ele descanse e saia do sol. Eu não sei o que lhe dizer, pois não estou acostumada a preocupar – me com um serviçal. Ele sorri, pede – me licença e vai ao encontro do criado. Ao longe o observo conversar calmamente com o jovem mestiço e colocar a mão em seu ombro e apontar para a residência que lhe pertence. O jovem mestiço olha – me assustado e com um abano de cabeça o libero.
Ele vem em minha direção e pára ao meu lado, sem nada dizer, observando a imensidão do mar lá em baixo...
Pergunto o que disse ao escravo e ele apenas diz que pediu para ele entrar, sentar e comer do bolo.
Eu o olho muito, é como se uma força mais poderosa do que minha vontade centra – se minha mente na presença imponente e meus olhos apenas obedecessem algo que me trás bem estar. Pergunto – lhe como um homem pode ser assim, pele morena, porém de olhos verdes... Levo minha pequena mão ao braço dele e o toco, em um misto de curiosidade, como se ele não fosse real.
Ali onde moro, quem tem a pele mais escura do que a minha é escravo, trabalha de sol a sol e não recebe muitas atenções...
Ele sorri e olha – me profundamente... Diz que já andou por muitos lugares e que nem toda pele queimada torna seu dono escravo...
...Está tarde, preciso ir embora... Convida – me para voltar, diz que olhar as estrelas ali de cima, é uma das visões mais lindas que existe.
Desço a encosta com meu escravo, mas não paro de olhar para trás, pois ele continua lá, parado, olhando – me ir embora.
Ele é um estranho no meu país, na minha cidade, na minha vida, mas sinto como se já o conhecesse toda uma vida, tamanha é a confiança que sinto em sua presença, em suas atitudes e em seus olhos...
... Eu voltei para vê – lo e comigo levei o escravo, meu guardião...
Cai a tarde e me sinto mais livre desde que meu pai morreu. Minha mãe deixa – me um pouco mais liberta e confia no escravo que me protege. Meu pai era um homem sério, de poucas palavras e de pulso firme, não permitindo às mulheres de sua casa andar por aí sem sua prévia permissão ou companhia.
Ele vem me receber e me conduz para o abismo, alguns metros apenas, longe de sua casinha. Ainda há sol e digo – lhe que vim ver as estrelas... Digo que minha mãe viajou e deixou – me aos cuidados da criadagem. Mais uma vez ele pergunta se não vou liberar o escravo... Digo – lhe sem maldade, mas com absoluta certeza que é o trabalho dele e que nasceu para fazer isto.
Ele sorri e diz que o escravo precisa descansar e sair do sol, sentar – se, pois cansa... Eu deixo que ele mais uma vez siga em direção ao mestiço e o oriente como quiser, pois sei que fará o que é certo.
...Ele está estendendo uma toalha no chão e pede que eu sente... É um lugar incrível, de silencio e paz...
Continuo olhando – o insistentemente, pois sei algumas coisas sobre ele e gostaria de saber mais, além do que minha mãe fala. Ela me disse que ele é uma espécie de padre, que viaja pelo mundo estudando e se tornando melhor.
É um homem muito alto, cabelos lisos, muito negros e brilhosos, olhos radiosos que parecem sempre estar alegres... Vejo ele usar muito o tom branco em suas vestes, o que o deixa muito bonito e ressalta a cor dourada de sua pele.
A noite cai, pergunto pelo escravo e ele me diz que o deixou ir descansar na carruagem lá embaixo, aos pés da planície.
...Ele está muito próximo de mim e fico olhando – o... Ele me beija... e deitamos na toalha. É um toque suave, lento, delicado, mas tem o poder de despertar algo adormecido dentro de mim... Ficamos ali, olhando as estrelas e admirando aquele manto negro forrado de pontos luminosos... O que nos embala é o som do mar...
Voltei muitas vezes naquele local, mas procurava ficar do lado de fora, observando o encanto da natureza e o mar mais adiante. Muitas vezes ele me convidou para entrar, mas minha cisma com a carência de luxo na casinha me impediu de entrar...
De mãos dadas, andamos por toda a extensão de mata que havia ali, hora correndo, hora dançava – mos ao sabor do vento e do jangalhar dos altos capins... Eu sorria... Muito, entregue a presença daquele homem alto e forte...
E por longo tempo, seus olhos me encantaram, pois sorriam com minha presença... Escutei ele falar por longo período da lei de igualdade entre os homens, de um poder superior que nos guardava e conduzia por entre terras distante até encontrar – mos aqueles que nos eram caros ao coração... Pouco eu entendia do que ele falava, mas ele brilhava de felicidade ao me contar tudo aquilo, então eu o escutava e respeitava o que ele me dizia...
Com o passar do tempo, nos envolvemos cada vez mais, ao ponto de eu fugir para encontra – lo, de não suportar sua ausência e de aprender com ele a olhar para o escravo e deixa – lo ir para a sombra descansar.
Vivi os dias mais felizes que uma moça solteira de minha tenra idade poderia viver... Eu amava e era amada, eu me sentia feliz e o via ser feliz também...
Falamos sobre casamento e uma vida juntos, falei dos meus projetos de que ele falasse com minha mãe, que fosse para o castelo morar conosco, mas ele me disse que era impossível... Que eu deveria estar ali com ele, não só como uma presença que ao tardar ia embora, mas como alguém que ficaria para sempre...
Eu não consegui ficar ali, o visitava quase todas as noites ou dias... Passava noites suaves em seus braços e ali, na relva, fazíamos amor de forma tranqüila, como se aquilo pudesse acarinhar ainda mais o amor que sentíamos um pelo outro...
Ele me falava do mundo, da liberdade, do aprendizado da igualdade e eu não entendia... Eu queria ser feliz, apenas isto, mas no meu mundo...
...Estamos na praia, caminhando, brincando, rindo muito... Riamos muito juntos... Era o que sabíamos fazer de melhor...
...Minha mãe está chegando na praia e com ela trás um séquito de serviçais e um homem desconhecido...
Ela nos aborda e manda que eu siga para casa com ela. A vejo olhar para o homem que amo e não vejo raiva em seus olhos... Vejo ela retroceder sem desrespeitar – lhe, como se o respeitasse muito...
Estou partindo com ela e o homem desconhecido, olho muito para trás e ele está lá, parado, olhando – me partir...
...Estou presa em casa, não posso sair e fugir do quarto seria impossível, pois a torre fica muito distante do chão. Ando triste e pergunto – me por que ele não vem me buscar ou ver – me, falar com minha mãe...
...Estou sendo informada de que casarei com aquele homem desconhecido... Estamos no salão de jantar, apenas nós três, à mesa suntuosa de minha casa. Ele é um homem belo, muito alto, sua pele é diferente da nossa, e ele veio me conhecer... Seus olhos não agridem – me, olha – me com respeito e carinho, mas meu coração está em outro lugar...
Tenho me sentido mal, minha saúde cada vez mais fraca e debilitada... Não entendo o que se passa comigo...
...Minha mãe está no quarto comigo e conosco uma serva que ajuda – me a vestir - me. Tiro a roupa e minha escandalizada mãe vê meu ventre proeminente. Em estado de preocupação e fora de seu habitual equilíbrio ela me diz que estou esperando um filho...
O choque não me abala, pois se realmente estou esperando um filho, este filho é um presente do homem que amo...
...Não sei quanto tempo se passou, mas preciso encontrar uma forma de vê – lo... Sai do quarto e estou esgueirando – me pela casa, observando a possibilidade de fugir por algumas horas, contar – lhe de meu estado...
Ouço minha mãe aos prantos, conversando com o futuro noivo, dizendo – lhe que estou grávida de outro homem e que não poderei casar – me com seu escolhido. Para minha surpresa, o futuro noivo diz que se casará comigo mesmo assim, pois me ama.
Minha mãe então desfere um golpe mortal, que tem o poder de roubar – me o chão. Conta – lhe que o meu grande amor é seu filho, um filho ilegítimo, o qual teve dentro do casamento com meu pai e o qual escondeu até aquele momento.
Conta que viajou para ter o filho e que este era filho de um dos escravos do castelo, o grande amor de sua vida. Conta que meu pai nunca soube do ocorrido e assim, para proteger o menino, ela o enviou para longe, amparado financeiramente, sem que ele soubesse que ela era sua mãe.
...Estou em minha cama, me sinto mal, sinto nojo de minha situação, de mim... Vomito muito, não consigo manter nada no estomago. Quem ampara – me é o futuro noivo, o qual senta na beirada da cama e segura meus cabelos para que eu possa vomitar. Ele é muito paciente comigo...
...Sinto pavor daquela situação, sinto nojo do meu corpo, da minha mente e me sinto maculada pelas mãos de meu irmão.
...É noite, estou caminhando em direção a cozinha e lá pego um veneno que as criadas usam para conter as invasões de ratos no castelo...
Fujo de casa, fugi do escravo que cuida – me... É noite, o breu toma conta do caminho e de meu coração. Sinto – me desesperada, abandonada, suja, pecadora. Ele nunca mais buscou – me e eu sangrava de dor por não ter paz, por saber daquela coisa horrível...
Estou nos fundos da igrejinha, sento lá aos prantos, queria entender por que me encontrava em uma situação tão horrível e que tinha o poder de me fazer sentir a pessoa mais suja do mundo, carregando uma criança que era filha de um irmão de sangue... Choro muito, estou muito descontrolada...
...Tomei o veneno... Quem me encontra é meu escravo, ele vem em meu socorro e logo surge aos meus olhos o irmão que minha mãe escondeu por toda uma vida. Ele segura – me nos braços e grita comigo, chora desesperado enquanto meus olhos fixam – se nele dolorosamente. Ele passa a mão na minha barriga volumosa e se desespera, tentando fazer com que eu sente para parar se salivar...
Peço que me perdoe por aquele ato tresloucado e nada mais consigo balbuciar, pois o veneno aperta – me a garganta e queima – me por dentro. Sinto que eu choro olhando o desespero dele, choro o horror daquela situação, choro o amor que tranco no peito e a culpa que sinto por ser amor por um irmão...
Ouço ele dizer “não” muitas vezes e ser sufocado pelo choro, ouço ele pedir ajuda...
Não consigo parar de expelir o veneno e sangue, sinto uma asfixia horrível e os gritos da minha mãe! Ela ajoelha – se ao meu lado e passa a mão em meus cabelos...
Estou morrendo, mas estou lúcida... Vejo a presença de meu noivo e a de meu fiel escravo... Ele me encontrara e buscara ajuda...
Há uma conversação desesperada entre minha mãe e meu amor e ela conta que é sua mãe também, há choro e desespero, há gritos de angústia e ele chora abraçado em mim contando que não é meu irmão.
Meus olhos o fixam, o desespero que sinto é horrível e não poder falar, voltar atrás é ainda mais aterrador. Eu estava morrendo e não tinha como escapar do meu ato...
Ele conta que meu pai o procurou, disse saber da história e que sabia que iria morrer e que nós duas ficariamos sozinhas, pois não tinhamos família. Contou que minha mãe havia perdido o primeiro e único filho do casamento entre ambos e que no lugar, ele havia colocado a menina mais linda que seus olhos já haviam visto, pois não suportaria ver a tristeza nos olhos da mulher que amava...
Minha mãe grita aos prantos... E ouço ele se culpar por não ter contado tudo antes, por ter esperado...
...Estou vagando na praia, estou suja, maltrapilha e com dor. Sinto dores terríveis no estomago a ponto de vomitar... Não sei quanto tempo estou por ali, chorando minha desgraça, chorando a vida que não vivi...
Não tenho revolta, apenas sinto uma dor sentimental terrível pelo ato impensado que me afastou do meu grande amor...
Estou na planície... É noite, estou cansada, saudosa de meu amor, saudosa de seu carinho...
Fico ali muito tempo... Olho o mar lá embaixo e sento – me invadida pela solidão... Há muitos anos eu não conseguia achar o caminho da casinha, há muito tempo eu não sentava ali e olhava para o céu, para o mar e sentia o perfume saudoso da brisa...
Lembro que tenho de mandar o escravo descansar e ir deitar na carroça lá embaixo, pois ele cansa também... Ergo – me e vou em direção ao local que ele sempre ficava, coloco a mão em seu ombro e digo que precisa descansar...
Neste ato lembro – me que ele não morreu comigo e choro emocionada, pois ele me seguira e continuava a cuidar de mim... Uma sensação emocionante de alegria me envolve e ao voltar – me, vejo meu amor, sorrindo, irradiando beleza e luz...
Ele me abraça e eu só quero descansar minha cabeça cansada em seu peito...
...Estamos na praia... Caminhamos sem pressa, sem pensar em nada...
Ao nosso encontro vem meu futuro noivo e ele sorri ao nos ver... Nos reencontramos e uma nova jornada está sendo planejada para ambos...
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